Interplexa

Do Latim Estérico: Inter (prep. "entre") + plexa (particípio do verbo "plicare", "dobrar", "desdobrar", "laçar") Significado: 1. neutro plural:"Coisas entrelaçadas ou que se desdobram internacionalmente" 2. feminino singular: "Mulher (ou menina) de camadas interligadas ou que se desdobra internacionalmente) Vide também: www.internexa.blogspot.com

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Local: Brasília, Toronto

Brasiliense de origem montalvanense desbravando o gelado inverno do doutorado canadense.

30.7.06

Meu Interior - Parte 3 de 5

Estamos apresentando "Meu Interior", uma minissérie em 5 capítulos.
Capítulo Terceiro

Como tudo começou - Meus pais são os dois dessa região perto de Montalvânia no norte de Minas, mas desde o começo da década de setenta eles moram em Brasília, onde nasci e cresci. Há oito anos, antes de morrer, meu avô deixou um pedaço de terra a cada um de seus quatorze filhos. Meu pai ficou com esse lindo pedaço de gerais, virgem e arisco, onde essa semana uma onça matou dois carneiros.

Os caseiros - Como meus pais tem a vida deles toda em Brasília, tem uma família de caseiros para tomar conta da fazenda. Anita cuida da casa, e Zé da roça e dos bichos. O três filhos deles, Antônio de quinze anos, Cielza de treze, e Zé Nílton de dez vão e voltam de ônibus para a escola rural todo dia, duas horas de viagem para ir e duas para voltar.

Confortos e Desconfortos - Quando eu era pequena eu não gostava de ir para a roça, porque é muito diferente da nossa vida em Brasília. É tudo muito rústico e parado. Hoje em dia eu acho rústico e extremamente interessante. O desconforto ainda está lá, mas fazer de conta que não existe não faz ele ir embora. Eu passei a semana passada toda lá, e, sem internet, telefone, televisão, asfaltos, lugar para ir, diversões, eu consegui estudar bastante. Li um pouco, escrevi um pouco, pensei para caramba.

Essa é Nova - Da última vez que eu fui lá, há um ano e meio, ela não ajudava a mãe nas tarefas de casa. Ela era criança. Mas agora, nesse lugar onde se vira mãe aos quinze anos, Cielza com treze já é gente grande. Meus pais também perceberam a mudança. Deve ser só porque ela está de férias na escola. Mesmo assim, a gente olha um para o outro meio que sem saber se a coisa certa é não deixar ela ajudar, ou, já que ela está trabalhando o dia como a mãe, pagar a diária para ajudar com a renda da casa. Criança tem é que brincar e estudar, não trabalhar. É até ilegal para a gente empregar alguém com menos de quatorze anos de idade. Por outro lado, quem trabalha sem receber não é escravo? Estávamos entre a cruz e a espada.

Só Entre a Família - As complicações e implicações da situação são muitas. Parte do problema que a família de Cielza mora com a gente, a cozinha deles é a nossa cozinha. Pode parecer que deixar a menina tirar a mesa e lavar a louça é exploração de trabalho infantil. Por outro lado, com treze anos, eu também lavava a louça lá de casa e ajudava em outros afazeres domésticos (e quando a gente conseguia, meu irmão também, só que ele era mais esperto). Eu não acho que isso foi ruim, pelo contrário. Agora, se alguém na época tivesse repreendido meus pais por causa disso, eu diria que eles estava se intrometendo onde não foram chamados. Nada a ver.

Mas a família de Cielza mora com a gente. A nossa casa é ao mesmo tempo a casa deles e o local de trabalho. E para eles isso é muito bom, e as famílias ao redor os invejam por causa disso. É bom para eles e bom para a gente. É que nem a história, não sei de que autor famoso, sobre o negro da roça e o negro da casa. O negro que trabalha na casa tem a vida melhor que a do negro da roça, mais confortável, comida melhor, tem a confiança do patrão e tal, mas ainda sim não é a casa dele. É uma situação complicada.

Dilema - A nossa família não queria que Cielza trabalhasse. Quem decidiu foi a família dela. E essa é uma família boa, que a gente gosta e respeita, assim como eles também gostam e respeitam a gente. Mas a minha família é contra a atitude comum nessas partes que considera normal criança trabalhar para ajudar na renda da família (vide a história do berço). Mas quando você ganha pouco, você meio que não tem muita escolha.

Então como é que a gente decide o que é uma questão de justiça, e o que é interferência? De qualquer jeito que você olha a situação é difícil.

Por hoje é só pessoal. Voltaremos amanhã com o quarto capítulo de "Meu Interior". Fiquem ligados!

29.7.06

Meu Interior - Parte 2 de 5

Atenção emissoras da rede interplexa. Na próxima linha começa o segundo episódio de "Meu Interior", uma minisséria em 5 capítulos.

No meio do nada - Eu passei a semana passada na fazenda dos meus pais, no interior árido e pobre onde não chega nem asfalto nem telefone (nem fixo nem celular), e onde eletricidade mesmo só chegou há dois ou três anos. Toda vez que a gente vai lá, a gente leva uma caminhonete cheia de doações, não por que a gente é muito rico, mas porque nossa família toda, tendo vindo dessa região, sabe que qualquer roupa usada ou brinquedo abandonado aqui para a gente de lá vale ouro. Essa região é como o Luiz Gozaga dizia, onde "quem é rico anda em burrico, quem é pobre anda a pé." E, modéstia a parte, a gente anda em burrico.

O Berço - Para se ter uma idéia da situação, conto a seguinte história verídica. Dessa vez, além da cota de roupas e brinquedos de sempre, a gente levou também um berço, que meu primo agora com quatro anos não precisa mais. Minha mãe separou cuidadosamente o tesouro em seis porções, e fomos as duas distribuí-lo entre seis famílias. O berço ficou com uma mulher que tinha tido gêmeos. Nós chegamos de tardezinha na cabaninha dela, que consistia em um cômodo principal que era sala e cozinha e tomava mais de metade da casa, e uns dois ou três cubículos que serviam de quarto. As paredes eram de barro, e o chão vermelho de terra batida.

O filho mais velho, um rapaz de quinze anos, não estava em casa. Na escola? Não. A mãe tinha achado um serviço para ele na roça onde talvez ele ganhasse $12 pela diária, e ela mandou ele matar aula e ir trabalhar.

Vendo a mulher sozinha com as crianças, minha mãe e eu não tivemos dúvida. Não dava para só entregar as partes do berço: a gente tinha que deixar era montado. Esse povo não sabe o que é berço, eu não sei nem se eles tinham cama. Deixasse o berço lá, ele não seria montado nunca. Talvez virasse as novas instalações do galinheiro.

E de qualquer forma, meu vício inveterado de montar quebra-cabeça não me deixaria passar a chance de montar aquele berço. Arregaçando as manguinhas, eu pedi para as enfermeiras me trazerem os instrumentos para começar a operação. Chave de fenda. Não tem. Me vê uma faca então. Não tem. Ela me deu então um daquales chaveiros que vem com um cortador de unha, você abre no meio e tem uma lixinha de metal. Um cortador de unha para montar um berço inteiro. Me senti a própria McGyver do "Profissão: Perigo".

Eu sentei no chão de terra e comecei a montar esse berço com uma lixa enferrujada do tamanho do meu mindinho. Como o berço era grande demais para passar pela porta, a gente tinha que montar ele na cozinha, seu paradeiro final. O sol se pôs, e virou um breu só. A lâmpada da cozinha tinha queimado, e não tinha nem lâmpada reserva, nem escada que alcançasse o telhado sem forro para trocar a lâmpada. Com muito esforço eu consegui convencer a dona a acender todas as outras duas lâmpadas da propriedade, uma lá fora na varanda, outra no quarto. Era o máximo da resplandecência.

Depois de muito insistir também, consegui que ela me trouxesse uma peixeira, ferrugem pura, sem ponta nem cabo. E com tal bisturi, terminei então a operação, e o berço ficou pronto, o móvel mais imponente da casa. Nós voltamos então para casa, com muitos obrigadas e três galinhas como prova.

Não percam amanhã o terceiro capítulo desta minissérie!

27.7.06

Meu Interior - Parte 1 de 5

Entrega - Esta semana, depois de muito esperar, recebi pelo correio dois livros: "Ensinando a Transgredir" (“Teaching to Transgress”) da bell hooks, e "Cavalo de Tróia" (“Trojan Horse”) da Page du Bois. Já que eu já falei um pouco sobre a du Bois, deixe-me falar então agora das minhas primeiras impressões sobre a bell hooks.

Do contra - De cara eu tenho que confessar que, por algum motivo, eu tenho uma imensa resistência a pessoas que têm uma legião de admiradores. Por exemplo, se eu já estivesse por aqui nos anos sessenta, provavelmente eu não gostaria dos Beatles do jeito que eu gosto. Foi essa mesma tendência de ir contra a maré que me fez não querer nem dar uma chance ao Paulo Freire por tanto tempo. Pra mim, ele meio que enfeitiçavava nas pessoas, e eu simplesmente recusava a me expor à influência de um guru desse calibre. Até que finalmente não teve mesmo jeito, e de repente entendi por que ele é tão admirado. Fui enfeitiçada também.

bell hooks - O mesmo aconteceu com a bell hooks. Muita gente fala muito bem dela. Gente demais, bem demais. Logo, ela era suspeita. Mas daí alguém me contou que o estilo dela meio que combinava com meu. Pronto. O velho truque do narcisismo deu certo. Agora eu tinha que ir ver o que que a bell hooks tinha de parecido comigo, embora estivesse determinada desde o princípio a achar qualquer defeito que preservasse minha individualidade estérica.

Outra Entrega - E então, apesar de todo meu preconceito e resistência, eu não tive que passar da primeira página para me entregar de vez. Eu me rendi a legião dos muitos que muito admiram a bell hooks. Mesmo nossas experiências de vida sendo tão diferentes, parecia que as palavras delas eram minhas, que eu lia a mim própria. Eu adorei o estilo dela, tão coloquial, tão apaixonado, tão bem pensado, mostrando a cada linha que o cérebro dela era tão sensível quanto o coração era inteligente. O contagiante encanto me pegou em cheio novamente.

Pontos - bell hooks também admira muito o Paulo Freire, o que fez ela ganhar muitos pontos comigo. Mesmo admirando, ela ainda assim faz críticas e desafios ao Paulo Freire. Mais pontos, até estrelinha. Ela até teve a oportunidade de falar com ele, de trocar idéias tomando sorvete. Isso me fez morrer de inveja e ciúmes. Mais estrelinhas, e medalha de honra ao mérito.

Vida no papel - Me encanta o jeito sincero e simples com que bell hooks fala da vida dela, seus medos, suas paixões, sua análise da pressão acadêmica de escrever todo mundo no mesmo formato. E ler sobre a vida dela me fez pensar sobre a minha, e a de muita gente que eu conheço.



Não perca amanhã o segundo capítulo desta estérica minissérie!

22.7.06

Buscando Nísia Floresta

Você viu esse link de um concurso de redação no meu blog? Viu? Mas você nunca ouviu falar dessa tal Nísia Floresta? Não? Eu também não.

Mas não ouve falar não é porque a cidadã não fez nada. É porque ninguém fala mesmo. Mas se não fala, como é que está tendo um concurso de redação sobre a tal figura?

Numa bela manhã dominical de junho, estava eu contente e serelepe em casa lendo o Correio Braziliense. Na minha seção favorita, o guia de empregos, logo me saltou aos olhos um anúncio do tamanho de um quarto da página, divulgando um concurso de redação da Fundação Assis Chateaubriand. Nessa época eu nem sonhava com esse blog, e escrever redação para concurso me pareceu um emprego free-lancer tão divertido quanto os outros empregos que eu estava namorando (para quem não sabe, procurar emprego sempre foi meu hobbie desde pequena). Juntou o útil com o agradável.

O problema era descobrir quem era a tal Nísia Floresta. Mas isso era o de menos. Ainda mais que o anúcio do concurso já indicava que eu ia gostar do assunto. "Educadora brasileira do século dezenove." Beleza, já fui com a cara. E eu, que já estava com água na boca, quando vi os cifrões, começando com 2 mil reais para o estudantes de primeira a quarta série, e só crescendo, aí que empolguei mesmo. Olha só:

ENSINO FUNDAMENTAL
1ª a 4ª séries:
1º lugar - R$ 2.000,00
2º lugar - R$ 1.000,00
3º lugar - R$ 500,00

5ª a 8ª séries:
1º lugar - R$ 4.000,00
2º lugar - R$ 2.000,00
3º lugar - R$ 1.000,00

ENSINO MÉDIO
1º lugar R$ 6.000,00
2º lugar R$ 3.000,00
3º lugar R$ 1.500,00

UNIVERSITÁRIO
1º lugar R$ 8.000,00
2º lugar R$ 4.000,00
3º lugar R$ 2.000,00

Só que parou por aí. E de repende caiu a ficha que só pode participar estudantes devidamente matriculados numa instituição educacional brasileira reconhecida pelo MEC. O que quer dizer que eu estou fora.

Tentei convencer várias pessoas a fazer o concurso. Até ofereci minha assessoria por uma quantia módica (o que eu queria mesmo era participar do concurso) . Mas ninguém me levou a sério. Deixando então essa história do concurso para lá, eu continuei tão intrigada com a tal da Nísia Floresta, que fui fuçar mais sobre ela. E, fuçando, achei tanta coisa interessante, que esse concurso já valeu a pena para mim.

O site oficial do concurso indica quatro sites, do qual o mais útil que eu achei foi:
http://www.memoriaviva.digi.com.br/nisia/

Combinando isso com uma pesquisa no Google, só achei assim um 5 sites sobre a pessoa Nísia Floresta. Ironicamente, a maior parte dos resultados é sobre a cidade de Nísia Floresta, RN, onde nasceu nossa personagem, e não sobre a personagem própria, em cuja honra a cidade foi rebatizada.

Um desses sites é de um artigo de uma certa Cecília Prada, que escreve regularmente para a revista online do SESC-SP. Gente, Nísia Floresta a parte, essa Cecília Prada só escreve sobre coisa fera, tipo Monteiro Lobato e filosofia no Brasil. Virei fã de carteirinha.

O site primeiro que saiu na minha busca foi:
http://www.brazzil.com/2004/html/articles/may04/p101may04.htm

Mas daí no final do texto, por algum motivo em inglês, tem a referência dizendo que ele apareceu primeiro em português na revista do SESC-SP, cujo endereço é:

http://www.sescsp.org.br/

O outro link legal foi para o site da editora Mulheres, de Florianópolis. Tem ali uns dois resumos biográficos que não deu para matar a sede, o que me fez resolver encomendar um dos livros da editora. O volume de correspodência entre Nísia e Comte (gente, a mulher correspondia com o Auguste Comte!) estava esgotado. Encomendei então "Nísia Floresta - A Primeira Feminista do Brasil", uma pequena antologia com introdução de Constância Lima Duarte.

A eficiência da editora foi de impressionar. De imediato recebi email da pessoa encarregada de despachar as encomendas, Zahidé L. Müzart, dizendo que o negócio já estava no correio. "Caramba!", pensei comigo, "deve ter uma pessoa lá só para fazer isso... eu nem terminei de olhar o site, e a encomenda já foi enviada!"

Olhando mais o site, percebi que a tal Zahidé não era só a despachante: a mulher tem é muito livro publicado por essa editora. Daí eu fico pensando: nossa, a editora deve ser dela mesma, né? A mulher escreve o livro, edita, imprime, vende, e manda pelo correio. Quem sabe faz ao vivo.

Mas para não ficar parecendo que o negócio é de fundo de quintal, olha só como as coisas se encontram. Paralelamente a isso tudo, continuei eu lendo avidamente a coluna da Cecília Prada, do SESC-SP. Lá pelas tantas ela cita essa Zahidé Müzart, como sendo uma acadêmica de primeira linha nesse ramo de escavar escritos por mulheres brasilieiras do século XIX.

A mulher então não só publica e despacha os próprios livros, mas é pesquisadora de primeira.

E não só ela pesquisa, escreve, publica e despacha os próprios livros, mas o de muita gente também. Os títulos da Editora Mulheres são muitos.

Isso que é gostar de livros, viu? Fiquei de cara.

Mas eu estava falando dos sites sobre a Nísia Floresta que, pelas minhas módicas capacidade de pesquisa no banco de dados "google", dá para contar nos dedos. O outro site que achei na minha busca foi para um artigo de uma doutoranda na Inglaterra, Charlotte Liddell, cuja tese é sobre a Nísia. O artigo está em:
http://www.palgrave-journals.com
/fr/journal/v79/n1/pdf/9400202a.pdf

Página da autora não achei, mas o da supervisora dela é:
http://www.llc.manchester.ac.uk/
SubjectAreas/SpanishPortugueseStudies/Staff/HOwen/

Então, já fiz o seu dever de casa todo. Você não quer fazer essa redação não? 150 linhas só (mais ou menos 3 páginas), inscrições até o final de agosto, a minha valiosa comissão dessa vez eu nem cobro. Topa?

Recomendações, alusões e referências:
- Regras oficiais do concurso: http://www.fac.correioweb.com.br/
- Sobre Nísia Floresta: http://www.memoriaviva.digi.com.br/nisia/
- Cecília Prada e Nísia (Inglês): http://www.brazzil.com/2004/html/articles/may04/p101may04.htm
- Cecília Prada no SESC-SP: http://www.sescsp.org.br/

11.7.06

Mutatis Mutandi

Tudo começou no dia que eu cheguei do Canadá em Brasília, quando o Francisco me chamou para ir na defesa da monografia da Naty no dia seguinte.

Então eu fui. Foi super legal. Era sobre Chico Buarque. Depois da defesa, saímos um grupo super legal, com uma discussão massa. Cérebro a mil.

Me toquei então que apesar de ter escutado muito Caetano e Raul desde a infância, Chico Buarque era um desses grandes artistas que eu conhecia por osmose, mas não conhecia muito bem.

Resolvi então tirar o atraso. Cheguei em casa, e fui escavando e colocando para tocar tudo que achava do Chico (do Chico Buarque nas coisas do Chico meu irmão). Como é tudo muito conhecido, não foi assim, "ó, que música diferente". Mas teve aquela surpresa de reparar pela primeira vez algo que você já ouviu milhões de vezes mas nunca se deu conta. Aquela coisa do "cara, surpreendente, né? Mas ao mesmo tempo previsível..."

As primeiras risadas vieram em ouvir "Façamos". Não foi só por que a letra é muito engraçada, mas porque é uma versão muito bem bolada de "Let´s do it (Let´s Fall in Love)", de Cole Porter, que é sempre a música de aquecimento da minha aula de dança. Risadas comparáveis às que vieram com a "Ópera do Malandro", uma versão tão fantástica de "Mack the Knife", que nem parece versão de tão bem feita.

Mas o que me fez pensar "Caramba, tenho que fazer um blog sobre isso!" foi "Mulheres de Atenas". Essa música tem tão tudo a ver com que estou estudando, que é de cair para trás. Só que quando saiu o blog, eu tinha que resumir antes o que estou estudando (Page du Bois, J.R. Martin, etc), então o blog só foi aumentando. E assim chegamos aqui.

Vocês entendem mais de Chico do que eu, então não vou reinventar a roda aqui com análises delongadas de uma música muito bem sacada (se quiserem uma, vide http://www.mundocultural.com.br/analise/Mulheres_de_Atenas.PDF). Mas acho que se a Page du Bois ou a Jane Roland Martin ouvissem (e entendessem) essa música, elas iam delirar.

Fora a rima e o ritmo que são simplesmente de outro mundo de geniais, o embasamento clássico e o paralelo com a realidade atual é coisa absolutamente fora de série. O que eu acho fabuloso no Chico é a manha que o cara tem de adaptar obras de artes feitas em lugares, épocas e realidades tão diferentes e recompor com tanta graça que parece que é coisa dessa realidade nossa aqui e agora. É assim com a "Opera do Malandro" e com "Façamos". É assim também com "Mulheres de Atenas."

Desde a primeira linha ("Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas") vemos, de forma irônica mas muito bem enquadrada, a idealização de costumes dos antigos que é objeto de ataque de estudos tipo o de du Bois. A descrição do ideal de mulher "sem gosto, vontade, sem nem defeito nem qualidade" ficou tão perfeita, que muita gente achou que o Chico estava falando sério.

Pode parecer erro absurdo para alguns, causado ou por histeria e hipersensibilidade femininas, ou ignorância e machismo masculinos, de achar que o Chico queria que a música fosse interpretada ao pé da letra. Mas dado o tanto de material teórico "sério" com esse tipo de retórica, além do tanto que este modelo de submissão ainda se repete em prática, tal erro é totalmente compreensível.

O que não quer dizer que podemos deixá-lo passar batido, só sacudir os ombros admirados da ignorância das pessoas. O erro é grosseiro, é sim. Mas é um erro que só prova o quanto a sociedade contemporânea ainda é grosseira. O simples cogitar que "Mulheres de Atenas" seja um ideal de verdade prova que, neste aspecto, não estamos muito a frente dos gregos de mais de três mil anos atrás em termos de igualdade. Isso é triste. Também triste é não reconhecer esse fato, e achar que já alcançamos esta igualdade, como se pensamento positivo puro e simples bastasse.

É isso que eu acho legal nos trabalhos que apresentei aqui, como o de Martin, du Bois, Reagan, Monteiro Lobato, e outros que vão aparecer ainda, como Paulo Freire, bell hooks, Nísia Floresta e Cecília Prada. E é justamente nessas horas que eu queria ter a manha do Chico de traduzir obras de uma realidade para outra e fazer a versão mais original até que o original. Mas enquanto o gênio não vem, deixo-os com o originalíssimo Chico.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem por seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro se encolhem
Se confortam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.


Referências, alusões e recomendações:

- "A Odisséia", de Homero
- "Mulheres de Atenas", de Chico Buarque
- "Let´s Do It (Let´s Fall in Love)", de Cole Porter (e também o "Façamos (Vamos Amar)", do Chico)
- "Mack the Knife", de Bob Darin (e também a "Opera do Malandro", do Chico)
- http://www.mundocultural.com.br/analise/Mulheres_de_Atenas.PDF

9.7.06

Vozes silenciosas

No episódio passado, eu falei que o "Paideia Redux" do Timothy Reagan é uma fonte de referências excelentes. Um dos trabalhos fascinantes que esse artigo apresentou para mim foi o da estudiosa clássica Page du Bois.

Uma escritora polêmica, o refrão principal de du Bois é um convite a uma releitura dos clássicos. Mas a idéia de du Bois não é copiar as culturas antigas, colocando-as num pedestal. Muito pelo contrário, a proposta é que reconheçamos não só o quanto herdamos dos gregos antigos, mas o quanto melhoramos, e o quanto ainda temos de melhorar.

Eis alguns títulos de obras de du Bois:

- "Cavalo de Tróia: resgatando os clássicos dos conservadores" ("Trojan horses : saving the classics from conservatives")
- "Escravos e outros objetos" ("Slaves and other objects")
- "Centauros e amazonas: mulheres e a pré-história da grande corrente do ser" ("Centaurs and amazons : women and the pre-history of the great chain of being")
- "Safo está pegando fogo" ("Sappho is burning")
- "Cultivando o corpo: psicoanálise e representações antigas da mulher" ("Sowing the body : psychoanalysis and ancient representations of women")
- "Tortura e verdade" ("Torture and truth")

Dá para ver dos próprios títulos uma preocupação com a história de "cidadãos de segunda classe". Estes são grupos de pessoas como mulheres, escravos, estrangeiros e até criaturas míticas que, pelo fato de serem diferentes da classe dominante, num momento ou outro da história não eram considerados "100% ser humano".

Eu tive a oportunidade de ler os capítulos sobre Platão em "Safo está pegando fogo" e em "Cultivando o corpo", que são absolutamente excelentes. Du Bois demonstra como que, apesar de estar muito a frente do seu tempo ao apresentar um Sócrates que considerava mulheres como pessoas sábias, Platão ainda assim nega-se a dar voz para mulheres.

Aspásia, Diotima e Safo falam por meio de Sócrates, mas na verdade estão ausentes. Elas não têm voz própria. Quando aparecem nos diálogos, como Xantipe no Fédon, e as flautistas no Banquete, elas são apresentadas como simplesmente uma interrupção na "discussões sérias" dos homens, e forçadas a se retirarem.

Até a sábia Safo, que é lembrada no Fédro, é apresentada numa voz e terreno que não é o seu. Numa jogada muito criativa, du Bois imagina o que Safo diria se ela resolvesse dar o troco e escrever um poema sobre o sábio Platão.

Page du Bois é para mim uma pecinha fundamental na construção da resposta para "para que estudar os clássicos". No momento, estou esperando ansiosamente para que o seu "Cavalo de Tróia" chegue pelo correio. Eu já estou até torcendo para uma abordagem "o-mal-feito-só-pode-ser-desfeito-de-dentro-para-fora" em relação aos estudos clássicos.

Afinal, como bem aprendemos dos gregos antigos, não tem nada mais poderoso do que a força que vem de dentro.

8.7.06

Jogos de Civilizações

É comum se perguntar qual a vantagem de se estudar culturas clássicas, como Roma Antiga, ou a Grécia, or o Antigo Egito ou a China.

Tem gente que acha que é porque os povos antigos eram o máximo, e depois deles tudo entrou em declínio.

Mas essa é uma visão que esquece todos os avanços dos últimos 5, 10, 15 ou 20 séculos.

Além disso, uma opinião dessa desconsidera o fato que as civilizações não desenvolvem linearmente. Qualquer um que já jogou Civilization III sabe que, em qualquer momento do jogo, pode ser que os zulus sejam mais avançados tecnologicamente do que os gregos, apesar de terem um território menor. Da mesma maneira, os Iroquois podem ser culturalmente mais desenvolvidos que os romanos, apesar de serem mais fracos militarmente.

Dizer portanto que uma civilização, presente ou passada, é mais civilizada que outra é ver um lado só da coisa. Com isso quero dizer não só que é uma visão simplista ("civilizado em que sentido?"), mas também no sentido de ser bairrista e um tanto injusto.

Outros podem dizer que estudamos civilizações antigas por pura curiosidade, mas que tal estudo não tem relevância nenhuma. Assim sendo, tanto faz estudar Roma Antiga ou tribos Tupi-Guarani. Tudo muito interessante, mas completamente inútil para a realidade atual.

Eu também acho essa versão bairrista, embora mais no sentido cronológico do que geográfico. Uma atitude dessa desconsidera toda uma riqueza de conhecimentos que ajudam a ver por que a civilização atual é o que é, e como nossas ações podem repercurtir no futuro. É como aceitar o risco de se reinventar a roda só de preguiça ou desinteresse de pesquisar o que já foi feito.

O artigo de Timothy Reagan entitulado "Paideia Redux: A Contemporary Case for the Classics" é até agora uma das respostas mais legais que já vi para a pergunta "para que estudar os clássicos?". O autor não só defende muito bem a relevância dos clássicos nas questões atuais, mas é uma fonte excelente de referências sobre o assunto.

As ligações que Reagan faz entre teorias recentes e antigas, assim como entre outros autores da discussão contemporânea do assunto exemplificam muito bem tanto a minha própria opinião sobre a relevância dos clássicos como a minha estratégia favorita para me dar bem no jogo de Civilization.

Nós todos, tanto como civilização quanto como jogadores individuais, começamos em locais diferentes, com atribuições específicas diferentes, e acesso a diferentes recursos. Nossas especificidades são ao mesmo tempo nosso ponto forte e nossa limitação. Uma civilização com muitas montanhas, por exemplo, tem mais acesso a minérios (mais produção industrial) e mais pontos de defesa, mas tem dificuldades em locomoção e agricultura. Uma civilização com o atributo militar faz exércitos mais fortes mais rápido, mas leva mais tempo para desenvolver culturalmente.

Fazer contatos com o máximo de civilizações possível o mais cedo possível é uma estratégia em que só se tem a ganhar. Desse jeito, conseguimos multiplicar nosso acesso a recursos diversos, assim como a velocidade em que fazemos progressos tecnológicos (pois enquanto um está inventando a roda, o outro já está adiantando o expediente de inventar a escrita). A troca de recursos e informações beneficia os dois lados.

Alguém pode dizer que o objetivo do jogo não é beneficiar os adversários, mas, pelo contrário, superá-los todos. Assim sendo, só poderíamos ganhar o jogo se num momento ou outro quebrarmos nossas alianças com as outras civilizações, deixando-as para trás.

Mas isso depende de como e por que se joga o jogo. Para aqueles que, como eu, jogam Civilization repetidamente, simplesmente superar o adversário já perdeu a graça. A parte legal é tentar jogar cada vez melhor, e superar os próprios recordes de pontuação anteriores. Para fazer isso (como descobri depois de inúmeras tentativas e erros), a estratégia melhor que encontrei foi fazer o máximo de alianças possível, o mais cedo possível.

Mas tem outros jogos que a gente só tem a oportunidade de jogar uma vez. Que eu saiba, por exemplo, a vida é um deles.

Referências, alusões e recomendações:

Sid Meier´s Civilization III

Reagan, Timothy. "Paideia Redux: A Contemporary Case for the Classics." Journal of Thought 38.3 (2003): 21-39.

Burbules, Nicholas C., and Rupert Berk. "Critical Thinking and Critical Pedagogy: Relations, Differences, and Limits." Changing Terrains of Knowledge and Politics. Ed. Thomas S. Popkewitz and Lynn Fendler. New York: Routledge, 1999. 45-65.

3.7.06

O Emílio, A Emília e a Filosofia

Acho que foi Jane Roland Martin no livro "Reclaiming a Conversation: the Ideal of the Educated Woman" (mas eu não tenho acesso ao livro no momento para confirmar) que, depois de dizer como que Sofia, o modelo de mulher que Rousseau descreve, é completamente inadequada, faz um chamado para que crie-se uma nova versão feminina do Emílio, uma Emília.

Os capítulos sobre Rousseau e sobre Wollstonecraft nesse livro publicado em 1985 foram meu primeiro contato com J.R. Martin, que eu li para um curso que fiz no ano passado. Eu achei o argumento tão surpreendentemente convincente, que resolvi tirar cópia dos dois primeiros capítulos e por na minha malinha para minhas férias aqui no Brasil.

Martin estava no comecinho da minha lista de leitura, então eu já li os dois capítulos rapidinho. E fiquei arrependida de não ter trazido o livro inteiro. Difícil acreditar que esses dois capítulos eram ainda mais impressionantes que os dois que eu já tinha lido. O motivo é provavelmente o fato do primeiro capítulo tratar de filosofia em geral e o segundo de Platão, dois tópicos sobre os quais venho ruminando desde o comecinho de minha vida acadêmica. Dos capítulos que li no ano passado, por outro lado, um trata de um autor que eu conhecia só de antologias filosóficas, e o outro de uma autora de quem nunca havia ouvido nem falar antes.

Como não era de se espantar muito, muitas das fichas obtidas quando eu li os capítulos sobre Rousseau e Wollstonecraft só foram cair agora, que li os dois capítulos iniciais. Uma dessas fichas foi que, de repente, eu me toquei que eu já conhecia a tal da Emily que a Jane Martin estava pedindo. Aliás, eu sempre conheci essa Emília. Ela é tudo que a Sofia do Rousseau não é: curiosa, irreverente, atrevida, esperta, extremamente inteligente, independente, até mandona. E ela foi criada no Brasil em 1920, antes da Jane Martin nascer. Foi a Emília e o pessoal do Sítio que me apresentaram a uma boa parte da literatura mundial, incluindo a Grécia Antiga, incluindo Sócrates, minha especialidade profissional. E isso antes dos meus dez anos de idade!

O Capítulo sobre Platão me fez pensar: "isso faz tanto sentido, como é que eu nunca li Platão desta maneira?" Foi aí que eu fiz essa "regressão intelectual" toda, que deu origem a esse blog. Como eu falei na postagem anterior, antes de eu ser uma fan do Sócrates, eu era fascinada com mitologia grega, especialmente Atena, deusa guerreira, deusa da sabedoria. E foi no Sítio eu ouvi falar desse povo todo. E eu até agora pensava que Monteiro Lobato era só "literatura infantil". De primeira qualidade, claro, mas basicamente só uma série de livros para crianças. Mas agora eu olho e arrepio de ver como que o cara estava na frente do seu tempo. O jeito que ele mistura a realidade rural brasiliera no começo do século vinte com tópicos da literatura mundial, como Cervantes, Hans Standen, irmãos Grimm, Peter Pan, Lewis Carroll, e mitologia grega, sem falar em outras "matérias", como matemática, gramática, história, geografia e biologia, e algo que filósofos de vanguarda como Martin e Paulo Freire, uns 50 anos depois, só têm que aplaudir.

Pensando sobre tudo isso, de repente eu entendi porque que a descrição de Martin, apesar de fazer muito sentido, não refletia tanto minha experiência de aprendizado que tive especialmente na infância. No meu desenvolvimento intelectual, antes de Sócrates, já tinha a Emília (e a Mônica também, mas esta é uma outra história). A Emília tem todas as características socráticas que admiro, e muito mais.

É incrível como, apesar do sucesso no Brasil e em outros países, o Sítio ainda é muito pouco divulgado no mundo. Até hoje não existe tradução para o inglês, por exemplo (mas eu já dou um jeito nisso). Apesar de sua relevância nos campos mais atuais da filosofia da educação, os artigos profissionais acadêmicos são poucos (achei só uns 50, contra uns 800 do Paulo Freire), a maior parte em português. Um dos meus projetos atuais é justamente começar a preencher esta lacuna.

Agora, se você está duvidando do cunho profundamente filosófico e atual do sítio, eis aqui uma palhinha. Neste episódio, do livro "O Minotauro", de 1937, a turma do sítio embarca para a Grécia antiga para resgatar tia Nastácia. A princípio, ficam hospedados na casa de Aspásia e seu marido, o governante Péricles. Esse "trechinho" é do cápítulo V, onde é a Dona Benta, e não a Emília, que está de protagonista.

Lá no pátio o grande heleno continuava de prosa com a velha. Discutiam política.

- Vencemos a aristocracia, minha senhora - dizia ele. - Hoje a Grécia é positivamente governada pelo povo. Sólon revelou gênio ao conceber a nossa forma de governo. Não há imposição dum homem. O governante é escolhido pelo povo. Eu, por exemplo, executo o que o povo deseja - e por isso me reelegem.

- O senhor é um caso excepcional - argumentou Dona Benta - diz que segue os desejos do povo, mas na realidade a sua inteligência e os seus excelentes discursos é que fazem o povo desejar isto ou aquilo. Quem realmente governa é o senhor, não o povo.

- Vejo que a senhora possui um alto descortino psicológico - disse Péricles sorrindo. - O povo tem muito das crianças. Quer ser conduzido - mas com aparências de que é ele quem de fato conduz e manda. (Comentário Estérico: se você achava que a alusão ao Emílio era mera coincidência, está aqui o tapinha de luva.) O meu sistema, entretanto, é nada querer em contrário aos interesses do povo. Sou o intérprete desses interesses - e o esclarecedor da cidade. (...)

- Noto um erro nas suas palavras quando se refere a "povo", Senhor Péricles. Não é o povo quem governa Atenas, sim a pequena classe dos cidadãos. Povo é a população inteira, e aqui há 400 mil escravos que não têm o direito de voto. Isto é injusto e será fatal à Grécia.

Péricles muito se admirou daquele modo de ver.

- Mas eles são escravos, minha senhora! Escravo é escravo.

- Engano seu, Senhor Péricles. Pelo fato de ser escravo, um homem não deixa de ser homem; e uma sociedade que divide os homens em livres e escravos está condenada a desaparecer.

Essa idéia fez o grego sorrir.

- Acha então que pode haver uma sociedade sem escravos e senhores? Quem fará os trabalhos pesados?

- Uma sociedade justa não pode ter escravos, Senhor Péricles, e nela todos os trabalhos serão feitos por homens livres. Assim é lá no mundo moderno donde vim."

Gente, a discussão continua, com menções a Aristóteles, Platão e princesa Isabel na mesma página, e Sócrates e Emília no próximo capítulo. Não é à toa que eu era uma criança tão esdrúxula! Mas agora eu cansei, e acho que vocês também.

Mas continuem ligados para o próximo capítulo deste estérico diário.

Agora

Desde criança sempre fui fascinada pelas culturas (língua, literatura, filosofia, etc) clássicas. Doidinha com o Sítio do Picapau Amarelo, e turma da Mônica, aos 9 anos conseguia descrever (em ordem e com detalhes) os Doze Trabalhos de Hércules, as deusas e deuses gregos, suas atribuições, personalidades e suas versões latinas. Falava de Aspásia e Péricles, Fídias e Sócrates como se fossem personagens infantis como Narizinho e Pedrinho, Mônica e Cebolinha, a Bela e a Fera, Mickey e Minnie.

“Mas que que isso tem a ver?”

Tem a ver que a paixão com as culturas clássicas que desenvolvi na infância tornaram-se tão arraigadas que, ao invés da carreira médica para qual me preparava, optei na universidade estudar letras clássicas e filosofia. Meu gosto por línguas, vivas e mortas, inspiradas pela “Gramática da Emília”, levou-me a Montreal, no Canadá, onde a salada lingüística fora e dentro da sala de aula parecia um parque temático Torre de Babel.

“O que estudos no Canadá tem a ver com a vida no Brasil, e vice-versa, e versa-vice?”

Durante meus estudos universitários no Canadá, muitas vezes escuto, tanto no Canadá quanto no Brasil, tanto na sala de aula quanto fora dela perguntas do tipo:

- "O que vocês está fazendo no Canadá estudando Latim?"
- "Qual a relevância disso para realidade atual?"
- "Sua formação no Brasil tem alguma coisa a ver a vida no Canadá?"
- “Mas eu achava que você era tão inteligente, como assim você ainda está na escola?”
- “Mas eu achava você tão inteligente, como assim você gosta de fazer alguma coisa além de estudar?”


Na minha cabeça não via contradição nenhuma em nenhum desses pontos. Mas pensei que o problema fosse comigo, já tinha pelas pessoas em cada uma dessas esferas profunda admiração. Como todas essa áreas sempre foram partes integrais da minha vida, e me recusava abrir mão de qualquer uma delas, para não ficar muito destoante, fui aos poucos compartimentalizando minha vida. Na parte teórica evitava fazer menção a prática. Na parte prática evitava qualquer blá blá blá teórico. Na vida do Canadá quase não traía minha origem brasileira. Nas férias no Brasil evitava tirar muita onda da vida no Canadá.

Mas como nunca dar para ser completamente neutra, fui ficando cada vez mais calada. Já que não é possível ser 100% só isso sem resquício daquilo, fui ficando apagada. De tanto não querer aparecer, fui ficando quase invisível. E a invisibilidade não é uma sensação legal, porque não é só os outros que esquecem de você, mas até você mesmo se esquece quem você é. Auto-invisibilidade.

Internexa e Interplexa

Perplexa, tive então uma conversa comigo mesma. Perguntei a mim: "Eu, quem é você?" E o único jeito que Eu soube responder a essa pergunta foi listar as coisas que me empolgam, listar as pessoas que fazem parte da minha vida. O Eu surgiu na interseção e interação de todas essas coisas e pessoas.

Esse blog então é isso: um ponto de contato entre coisas e pessoas, idéias e experiências, países e línguas, escritores e leitores, elementos todos aparentemente sem nexo algum, mas que fazem todos partes do eu estérico. É uma combinação de confissões agostinianas, meditações cartesianas, memórias da Emília (com a mesma modéstia destes três), querido diário, diálogo platônico, ágora socrática, fórum internético, álbum de figurinhas e outras quimeras estéricas. Tudo sem ordem nem método, mas tudo interconnectado.

Fiquem ligados! A Ágora é agora!

P.S. A idéia foi fazer esse blog simultâneamente em português e inglês, para rolar um bate-papo entre meu círculo brasileiro e meu círculo canadense. Mas não deu muito certo por os dois círculos na mesma página. Criei então uma página separada para o conteúdo em inglês(separações de novo, o sistema prevalece mais uma vez!). Mas não deixemos o sistema forçar mais esta segregação: sinta-se mais do que a vontade para olhar, comentar e participar das duas páginas. O endereço da interplexa em inglês é www.internexa.blogspot.com