Interplexa

Do Latim Estérico: Inter (prep. "entre") + plexa (particípio do verbo "plicare", "dobrar", "desdobrar", "laçar") Significado: 1. neutro plural:"Coisas entrelaçadas ou que se desdobram internacionalmente" 2. feminino singular: "Mulher (ou menina) de camadas interligadas ou que se desdobra internacionalmente) Vide também: www.internexa.blogspot.com

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Brasiliense de origem montalvanense desbravando o gelado inverno do doutorado canadense.

25.2.07

Lobato e Futebol

Essa semana eu comecei a ler "A Barca de Gleyre", um volume com as cartas que Monteiro Lobato enviou ao seu amigo Godofredo Rangel ao longo de quarenta anos. Esse calhamaço, cuja leitura adiei por meses, desgostosa da grossura do livro e da camada de poeira sobre a cópia que tirei da biblioteca, é aliás divertidíssimo, ainda mais para aqueles que se interessam pelas "várias faces de Lobato".

O trechinho abaixo, escrito por Lobato quando era ainda um estudante de 22 anos, é um exemplo do que tenho descoberto da vida deste divertido autor. Dedico este post a um outro escritor de 22 anos que conheço, que também conhece as emoções e sofrimentos de fazenda e futebol nas horas em que não está escrevendo.

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S. Paulo, 11, 7, 1904,

Rangel:

Quanta atribulação, meu caro! Tua última chegou no momento em que eu partia para Taubaté, na folga do mês de greve que nos deu esta nossa inefável academia. Fui com planos de responder de lá - mas sobrevieram atribulações. Andei léguas a cavalo, lá pelos sertões do Buquira, e cheguei até às raias de Minas. Voltei para Taubaté derreado, bambo. (...) E cá estou em S. Paulo - mas ainda atribulado. Mudei-me para um quarto de frente na rua Araújo 26, com um lampeão de rua bem junto à minha janela. Tenho luz de graça. E defronte há uma vizinha janeleira que já piscou. Em vez de namorá-la, meti-me pelo futebol - Palmeiras. Joguei vários dias seguidos e fiquei mais derreado que com as léguas do sertão. Estou cheio de pisaduras e dodóis.

Isto deve ser o que na Vida Intensa o Th. Roosevelt quer. O futebol empolgou-me de alma e corpo; escrevo crônicas e jógo. Diz o Tito que é mania - e diz-lhe o Raul: "Jaques, tu es un âne."* Seja como for, asseguro-te que o futebol apaixona e contunde. (...)

Bom, a cama está a chamar este corpo contuso. Adeus.


LOBATO





* "Jacques, você é uma besta", frase do livro Petit Chose, de Alphonse Daudet (Nota Estérica)

2.2.07

As muitas faces de Lobato

Estando numa universidade no Canadá, é bem difícil responder rapidamente a pergunta "Quem é esse tal Monteiro Lobato de quem você tanto fala?"

É difícil explicar a magnitude da obra, sua originalidade, e o impacto dele na literatura brasileira. Mais difícil ainda é explicar o que faz dele tão único na literatura infantil mundial. Quando a conversa entra no tópico "ideologia", as pessoas ficam tontinhas:

- Lobato admirava Marx e também Ford?
- Era liberal e também conservador?
- Idealista e também cético?
- Eurocêntrico e também anti-eurocentrismo?
- Racista e também anti-racismo?
- Machista e também feminista?
- Democrático e também individualista?

E a resposta minha é sempre "sim para todas", o que faz as pessoas acharem que eu não sei o que estou falando, e me aconselhem estudar mais, escolher um, e aprender como marcar meus X. Mas é o "sim para todas" que faz do Lobato uma figura tão interessante.

Hoje por acaso esbarrei numa descrição dramática (cômica, se não fosse tão trágica, e vice-versa) das muitas faces de Lobato. O testemunho, de Ênio Silveira, é parte de uma entrevista publicada na coleção "Editando o Editor", publicada pela Edusp. Uma ótima pedida para quem se interessa na história editorial brasileira (e conseqüentemente, na figura de Monteiro Lobato. E vice-versa).

O Funeral de Monteiro Lobato

Eu era amigo do Lobato, portanto, vocês hão de compreender que, por mais do que profundas e dolorosas razões, compareci ao enterro e fiquei o tempo todo grudado ao caixão do Monteiro Lobato. Foi, para dar uma pálida idéia, um enterro comparável ao do cantor Francisco Alves, multidões, multidões. Calculo que havia umas duzentas mil pessoas da cidade de São Paulo. São Paulo parou. A morte de Lobato – não é Getúlio Vargas não, é um escritor que morreu – parou a cidade de São Paulo, o centro da cidade, as lojas espontaneamente fecharam as portas. Aquela massa compacta subindo a Consolação – vinda do centro da cidade, no cemitério, esperando o enterro. Estive onde foi velado o corpo, em Campos Elíseos, depois fui para o cemitério esperar. Pois chegou aquela multidão, fervendo, compacta, sólida, e então fiquei ao lado do túmulo vendo aquela cena maravilhosa. O Lobato era, entre outras coisas fascinantes, acusado de comunista; ele não era propriamente comunista, mas simpatizava com o partido. Ele foi muito atacado pela Igreja, o Lobato foi muito acusado. Não era membro do partido, mas era muito amigo de comunistas e sempre esteve ao lado do partido nos momentos mais difíceis. Mas, ao mesmo tempo, ele era espírita e comparecia às Sociedades Espíritas - ia para a Europa em espírito -, acreditava no Além, kardecista, não sei o quê, mas espírita. Era, ao mesmo tempo, barão rural, da aristocracia rural, ele era visconde, se houvesse o Império ele ainda seria visconde. Também era membro de uma Sociedade Agrícola de São Paulo, do Clube Piratininga e de outras coisas que reuniam a aristocracia rural paulista. Era também bom escritor, portanto tinha a sua grei de escritor-jornalista. Ali, “namorava” também alguns trotskistas, que por isso o julgavam trotskista.

Bom, então, esta fauna diversa, multifacetada, se reuniu ali, à beira do túmulo. Quando iam descer o corpo, um pouco antes, pediu a palavra arrebatadamente o Rossini Camargo Guarnieri, poeta, membro do Partido Comunista:

- Camarada Lobato - era ditadura, o partido era ilegal -, estamos aqui, teus irmãos, não apenas para chorar por ti, mas para dizer que jamais morrerás, que estarás vivo na consciência do povo, no coração do povo, como um batalhador, como um companheiro...

- Perdão, companheiro não! Lobato era trotskista – era o professor Phebus Gikovate. - Canalha, filho da puta ...

Principiaram aí cenas de pugilato, soco, caíram os dois, e rolaram no chão, o Gikovate e o Camargo Guarnieri caíram na cova aberta. Uma cena de filme de Felini. Quando tiraram os dois, um sujeito Clube Piratininga disse assim:

- Não, o senhor Lobato era da fina aristocracia, se tivéssemos ainda o Império, ele seria um nobre, nobre por dentro e nobre por fora. Lobato...

Era uma gritaria. D. Purezinha, viúva do Lobato, chorava, na verdade, não sabia se chorava ou ria. Eu achando que o Lobato gostava muito dessas cenas, estava me divertindo imensamente. *


Eu me divirto também: acho que o fato de o Lobato se simpatizar com pessoas de vários "-ismos" diferentes é parte do que faz dele uma figura tão singular. O difícil é assistir a briga dos "-ismos" dos outros sem levar uns tapas...


* In Ferreira, J. P (Ed.) , Ênio Silveira, Coleção" Editando o Editor", v. 3, Edusp, São Paulo, 1992.