O Emílio, A Emília e a Filosofia
Acho que foi Jane Roland Martin no livro "Reclaiming a Conversation: the Ideal of the Educated Woman" (mas eu não tenho acesso ao livro no momento para confirmar) que, depois de dizer como que Sofia, o modelo de mulher que Rousseau descreve, é completamente inadequada, faz um chamado para que crie-se uma nova versão feminina do Emílio, uma Emília.
Os capítulos sobre Rousseau e sobre Wollstonecraft nesse livro publicado em 1985 foram meu primeiro contato com J.R. Martin, que eu li para um curso que fiz no ano passado. Eu achei o argumento tão surpreendentemente convincente, que resolvi tirar cópia dos dois primeiros capítulos e por na minha malinha para minhas férias aqui no Brasil.
Martin estava no comecinho da minha lista de leitura, então eu já li os dois capítulos rapidinho. E fiquei arrependida de não ter trazido o livro inteiro. Difícil acreditar que esses dois capítulos eram ainda mais impressionantes que os dois que eu já tinha lido. O motivo é provavelmente o fato do primeiro capítulo tratar de filosofia em geral e o segundo de Platão, dois tópicos sobre os quais venho ruminando desde o comecinho de minha vida acadêmica. Dos capítulos que li no ano passado, por outro lado, um trata de um autor que eu conhecia só de antologias filosóficas, e o outro de uma autora de quem nunca havia ouvido nem falar antes.
Como não era de se espantar muito, muitas das fichas obtidas quando eu li os capítulos sobre Rousseau e Wollstonecraft só foram cair agora, que li os dois capítulos iniciais. Uma dessas fichas foi que, de repente, eu me toquei que eu já conhecia a tal da Emily que a Jane Martin estava pedindo. Aliás, eu sempre conheci essa Emília. Ela é tudo que a Sofia do Rousseau não é: curiosa, irreverente, atrevida, esperta, extremamente inteligente, independente, até mandona. E ela foi criada no Brasil em 1920, antes da Jane Martin nascer. Foi a Emília e o pessoal do Sítio que me apresentaram a uma boa parte da literatura mundial, incluindo a Grécia Antiga, incluindo Sócrates, minha especialidade profissional. E isso antes dos meus dez anos de idade!
O Capítulo sobre Platão me fez pensar: "isso faz tanto sentido, como é que eu nunca li Platão desta maneira?" Foi aí que eu fiz essa "regressão intelectual" toda, que deu origem a esse blog. Como eu falei na postagem anterior, antes de eu ser uma fan do Sócrates, eu era fascinada com mitologia grega, especialmente Atena, deusa guerreira, deusa da sabedoria. E foi no Sítio eu ouvi falar desse povo todo. E eu até agora pensava que Monteiro Lobato era só "literatura infantil". De primeira qualidade, claro, mas basicamente só uma série de livros para crianças. Mas agora eu olho e arrepio de ver como que o cara estava na frente do seu tempo. O jeito que ele mistura a realidade rural brasiliera no começo do século vinte com tópicos da literatura mundial, como Cervantes, Hans Standen, irmãos Grimm, Peter Pan, Lewis Carroll, e mitologia grega, sem falar em outras "matérias", como matemática, gramática, história, geografia e biologia, e algo que filósofos de vanguarda como Martin e Paulo Freire, uns 50 anos depois, só têm que aplaudir.
Pensando sobre tudo isso, de repente eu entendi porque que a descrição de Martin, apesar de fazer muito sentido, não refletia tanto minha experiência de aprendizado que tive especialmente na infância. No meu desenvolvimento intelectual, antes de Sócrates, já tinha a Emília (e a Mônica também, mas esta é uma outra história). A Emília tem todas as características socráticas que admiro, e muito mais.
É incrível como, apesar do sucesso no Brasil e em outros países, o Sítio ainda é muito pouco divulgado no mundo. Até hoje não existe tradução para o inglês, por exemplo (mas eu já dou um jeito nisso). Apesar de sua relevância nos campos mais atuais da filosofia da educação, os artigos profissionais acadêmicos são poucos (achei só uns 50, contra uns 800 do Paulo Freire), a maior parte em português. Um dos meus projetos atuais é justamente começar a preencher esta lacuna.
Agora, se você está duvidando do cunho profundamente filosófico e atual do sítio, eis aqui uma palhinha. Neste episódio, do livro "O Minotauro", de 1937, a turma do sítio embarca para a Grécia antiga para resgatar tia Nastácia. A princípio, ficam hospedados na casa de Aspásia e seu marido, o governante Péricles. Esse "trechinho" é do cápítulo V, onde é a Dona Benta, e não a Emília, que está de protagonista.
Lá no pátio o grande heleno continuava de prosa com a velha. Discutiam política.
- Vencemos a aristocracia, minha senhora - dizia ele. - Hoje a Grécia é positivamente governada pelo povo. Sólon revelou gênio ao conceber a nossa forma de governo. Não há imposição dum homem. O governante é escolhido pelo povo. Eu, por exemplo, executo o que o povo deseja - e por isso me reelegem.
- O senhor é um caso excepcional - argumentou Dona Benta - diz que segue os desejos do povo, mas na realidade a sua inteligência e os seus excelentes discursos é que fazem o povo desejar isto ou aquilo. Quem realmente governa é o senhor, não o povo.
- Vejo que a senhora possui um alto descortino psicológico - disse Péricles sorrindo. - O povo tem muito das crianças. Quer ser conduzido - mas com aparências de que é ele quem de fato conduz e manda. (Comentário Estérico: se você achava que a alusão ao Emílio era mera coincidência, está aqui o tapinha de luva.) O meu sistema, entretanto, é nada querer em contrário aos interesses do povo. Sou o intérprete desses interesses - e o esclarecedor da cidade. (...)
- Noto um erro nas suas palavras quando se refere a "povo", Senhor Péricles. Não é o povo quem governa Atenas, sim a pequena classe dos cidadãos. Povo é a população inteira, e aqui há 400 mil escravos que não têm o direito de voto. Isto é injusto e será fatal à Grécia.
Péricles muito se admirou daquele modo de ver.
- Mas eles são escravos, minha senhora! Escravo é escravo.
- Engano seu, Senhor Péricles. Pelo fato de ser escravo, um homem não deixa de ser homem; e uma sociedade que divide os homens em livres e escravos está condenada a desaparecer.
Essa idéia fez o grego sorrir.
- Acha então que pode haver uma sociedade sem escravos e senhores? Quem fará os trabalhos pesados?
- Uma sociedade justa não pode ter escravos, Senhor Péricles, e nela todos os trabalhos serão feitos por homens livres. Assim é lá no mundo moderno donde vim."
Gente, a discussão continua, com menções a Aristóteles, Platão e princesa Isabel na mesma página, e Sócrates e Emília no próximo capítulo. Não é à toa que eu era uma criança tão esdrúxula! Mas agora eu cansei, e acho que vocês também.
Mas continuem ligados para o próximo capítulo deste estérico diário.
Os capítulos sobre Rousseau e sobre Wollstonecraft nesse livro publicado em 1985 foram meu primeiro contato com J.R. Martin, que eu li para um curso que fiz no ano passado. Eu achei o argumento tão surpreendentemente convincente, que resolvi tirar cópia dos dois primeiros capítulos e por na minha malinha para minhas férias aqui no Brasil.
Martin estava no comecinho da minha lista de leitura, então eu já li os dois capítulos rapidinho. E fiquei arrependida de não ter trazido o livro inteiro. Difícil acreditar que esses dois capítulos eram ainda mais impressionantes que os dois que eu já tinha lido. O motivo é provavelmente o fato do primeiro capítulo tratar de filosofia em geral e o segundo de Platão, dois tópicos sobre os quais venho ruminando desde o comecinho de minha vida acadêmica. Dos capítulos que li no ano passado, por outro lado, um trata de um autor que eu conhecia só de antologias filosóficas, e o outro de uma autora de quem nunca havia ouvido nem falar antes.
Como não era de se espantar muito, muitas das fichas obtidas quando eu li os capítulos sobre Rousseau e Wollstonecraft só foram cair agora, que li os dois capítulos iniciais. Uma dessas fichas foi que, de repente, eu me toquei que eu já conhecia a tal da Emily que a Jane Martin estava pedindo. Aliás, eu sempre conheci essa Emília. Ela é tudo que a Sofia do Rousseau não é: curiosa, irreverente, atrevida, esperta, extremamente inteligente, independente, até mandona. E ela foi criada no Brasil em 1920, antes da Jane Martin nascer. Foi a Emília e o pessoal do Sítio que me apresentaram a uma boa parte da literatura mundial, incluindo a Grécia Antiga, incluindo Sócrates, minha especialidade profissional. E isso antes dos meus dez anos de idade!
O Capítulo sobre Platão me fez pensar: "isso faz tanto sentido, como é que eu nunca li Platão desta maneira?" Foi aí que eu fiz essa "regressão intelectual" toda, que deu origem a esse blog. Como eu falei na postagem anterior, antes de eu ser uma fan do Sócrates, eu era fascinada com mitologia grega, especialmente Atena, deusa guerreira, deusa da sabedoria. E foi no Sítio eu ouvi falar desse povo todo. E eu até agora pensava que Monteiro Lobato era só "literatura infantil". De primeira qualidade, claro, mas basicamente só uma série de livros para crianças. Mas agora eu olho e arrepio de ver como que o cara estava na frente do seu tempo. O jeito que ele mistura a realidade rural brasiliera no começo do século vinte com tópicos da literatura mundial, como Cervantes, Hans Standen, irmãos Grimm, Peter Pan, Lewis Carroll, e mitologia grega, sem falar em outras "matérias", como matemática, gramática, história, geografia e biologia, e algo que filósofos de vanguarda como Martin e Paulo Freire, uns 50 anos depois, só têm que aplaudir.
Pensando sobre tudo isso, de repente eu entendi porque que a descrição de Martin, apesar de fazer muito sentido, não refletia tanto minha experiência de aprendizado que tive especialmente na infância. No meu desenvolvimento intelectual, antes de Sócrates, já tinha a Emília (e a Mônica também, mas esta é uma outra história). A Emília tem todas as características socráticas que admiro, e muito mais.
É incrível como, apesar do sucesso no Brasil e em outros países, o Sítio ainda é muito pouco divulgado no mundo. Até hoje não existe tradução para o inglês, por exemplo (mas eu já dou um jeito nisso). Apesar de sua relevância nos campos mais atuais da filosofia da educação, os artigos profissionais acadêmicos são poucos (achei só uns 50, contra uns 800 do Paulo Freire), a maior parte em português. Um dos meus projetos atuais é justamente começar a preencher esta lacuna.
Agora, se você está duvidando do cunho profundamente filosófico e atual do sítio, eis aqui uma palhinha. Neste episódio, do livro "O Minotauro", de 1937, a turma do sítio embarca para a Grécia antiga para resgatar tia Nastácia. A princípio, ficam hospedados na casa de Aspásia e seu marido, o governante Péricles. Esse "trechinho" é do cápítulo V, onde é a Dona Benta, e não a Emília, que está de protagonista.
Lá no pátio o grande heleno continuava de prosa com a velha. Discutiam política.
- Vencemos a aristocracia, minha senhora - dizia ele. - Hoje a Grécia é positivamente governada pelo povo. Sólon revelou gênio ao conceber a nossa forma de governo. Não há imposição dum homem. O governante é escolhido pelo povo. Eu, por exemplo, executo o que o povo deseja - e por isso me reelegem.
- O senhor é um caso excepcional - argumentou Dona Benta - diz que segue os desejos do povo, mas na realidade a sua inteligência e os seus excelentes discursos é que fazem o povo desejar isto ou aquilo. Quem realmente governa é o senhor, não o povo.
- Vejo que a senhora possui um alto descortino psicológico - disse Péricles sorrindo. - O povo tem muito das crianças. Quer ser conduzido - mas com aparências de que é ele quem de fato conduz e manda. (Comentário Estérico: se você achava que a alusão ao Emílio era mera coincidência, está aqui o tapinha de luva.) O meu sistema, entretanto, é nada querer em contrário aos interesses do povo. Sou o intérprete desses interesses - e o esclarecedor da cidade. (...)
- Noto um erro nas suas palavras quando se refere a "povo", Senhor Péricles. Não é o povo quem governa Atenas, sim a pequena classe dos cidadãos. Povo é a população inteira, e aqui há 400 mil escravos que não têm o direito de voto. Isto é injusto e será fatal à Grécia.
Péricles muito se admirou daquele modo de ver.
- Mas eles são escravos, minha senhora! Escravo é escravo.
- Engano seu, Senhor Péricles. Pelo fato de ser escravo, um homem não deixa de ser homem; e uma sociedade que divide os homens em livres e escravos está condenada a desaparecer.
Essa idéia fez o grego sorrir.
- Acha então que pode haver uma sociedade sem escravos e senhores? Quem fará os trabalhos pesados?
- Uma sociedade justa não pode ter escravos, Senhor Péricles, e nela todos os trabalhos serão feitos por homens livres. Assim é lá no mundo moderno donde vim."
Gente, a discussão continua, com menções a Aristóteles, Platão e princesa Isabel na mesma página, e Sócrates e Emília no próximo capítulo. Não é à toa que eu era uma criança tão esdrúxula! Mas agora eu cansei, e acho que vocês também.
Mas continuem ligados para o próximo capítulo deste estérico diário.
11 Comments:
ester, sou amiga do chico e, orientada por ele, vim visitar o seu blog. muito bom e delicioso de ler. espero novas aventuras fantásticas.
beijos, silvinha.
Pois é, Silvinha, acho que se não fosse você, não tinha nem interplexa nem pinoquionews. Para quem não sabe, foi a Silvinha que apresentou o blogspot para o Chico, e o Chico que apresentou para mim. Viu como as coisas se interconnectam?
Ester, muito legal. Lembro-me de ser chamada na escola para a diretora reclamar que você lia muito e era muito cedo para estar lendo Monteiro Lobato. Deixava de brincar durante o recreio para ler. Mas você era muito feliz com isso. A leitura facilitou sua aprendizagem em todas as disciplinas. Vá em frente, acreditando em seus sonhos e construido sua história.
Parabéns! Beijos, MM.
Ester, desde pequena vc é grande!
PP
Pois, é, MM e PP, a diretora não imaginava que eu estava infiltrada na escola dela com fantasia de criança fazendo minha apuração de dados para essa página... Por isso que eu falo, minha gente: de olho nas crianças!
ester, aqui é o paniago.
posso pedir? então é o seguinte: esse texto tem que ir pra atimo. pelo visto, a família macêdo vai ocupar todos os espaços da revista. e digo mais: tem que ir com um fecho e essa história paralela de vc infiltrada na escola é uma boa (excelente, aliás, o papo de apuração parece jornalismo puro) deixa. posso contar? aliás, minha vontade era fazer ctrl c ctrl v e já mandar o texto pro luciano diagramar. mas não posso fazer isso. libera o texto aí, ester. um beijo.
Paniago, liberado. Mas vai ter cachê?
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Ester, aqui é emiliana. Faço mestrado em letras e o meu assunto é Emília. Adorei seus comentários sobre Emília e Emílio, estou nesse momento pesquisando esse assunto e escrevendo. Podemos trocar idéias?
Este comentário foi removido pelo autor.
Olá! agora há pouco li uma frase de "Memórias da Emilia" (quando ela diz que a gente, quando morre, vira hipótese...) e fiquei pensando se Monteiro Lobato não tinha se inspirado no Emílio de Rousseau. Fuçando no Google, achei seu blog. Gostei muito. Pretendo voltar mais aqui. :)
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