Interplexa

Do Latim Estérico: Inter (prep. "entre") + plexa (particípio do verbo "plicare", "dobrar", "desdobrar", "laçar") Significado: 1. neutro plural:"Coisas entrelaçadas ou que se desdobram internacionalmente" 2. feminino singular: "Mulher (ou menina) de camadas interligadas ou que se desdobra internacionalmente) Vide também: www.internexa.blogspot.com

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Brasiliense de origem montalvanense desbravando o gelado inverno do doutorado canadense.

1.8.06

Meu Interior - Parte 4 de 5

Começa agora o quarto e penúltimo capítulo da minissérie "Meu Interior"

Não é tão mal assim – Para não ficar parecendo que eu, minha família ou a família de Cielza são mostros malvados, eu gostaria de enfatizar que a família de Cielza vive relativamente bem, comparado às pessoas dessa região. Isso pode não parecer muito, visto que o padrão da região é baixo. Mas ém terra de cego, quem tem olho é rei: para ter uma idéia, eles nem têm direito a bolsa escola, por estar acima da faixa da pobreza (rendimentos de mais de $90,00 per capita). São pessoas relativamente bem esclarecidas, honestas, trabalhadoras, engajados na comunidade, que, ao contrário dos outros, que tiram os filhos da escola para trabalhar, eles realmente se preocupam com a educação dos filhos. Cielza só está trabalhando agora porque está de férias, assim como Antônio.

Eles são uma família muito unida, que reza o terço juntos todos os dias. Minha família também (ou pelo menos quase sempre). Quando estamos lá, rezamos as duas famílias juntas, e todos, adultos e crianças, da minha família ou da deles, tomam iniciativa para puxar a reza.

Drama - Ainda assim, era Cielza que estava lavando a louça, enquanto eu estava lendo meus livros. Ela estava trabalhando e eu também, com a diferença que eu sou paga para isso, e ela só tem treze anos. E eu não conseguia parar de pensar que o meu trabalho só estava indo tão bem porque a menina de treze anos estava lavando a louça para mim. Eu contemplava tal privilégio horrorizada, sentindo o peso da injustiça, e sem mesmo poder recusar um privilégio que eu nem merecia nem desejava. Essa agonia toda, quando eu nem acho ruim lavar louça.

Uma mão lava a outra - Eu olhava para a menina tirando a mesa, e queria tirar os pratos da mão dela. Na minha cabeça eu dizia, convidava, mandava, que ela fosse brincar, que deixasse que a louça eu lavava. Mas a coragem de dizer isso eu não tinha. Tudo que eu dava conta de fazer era olhar para ela com profunda gratidão e reverência pelo trabalho de suas mãozinhas pobres. E sorrir. Era o trabalho dela que permitia que o meu progredisse, que meu aprendizado acontecesse, que minha vida melhorasse, que portas fossem abertas para mim.

Eu lavar os pratos para ela não adiantaria nada, não mudaria nada a vida dela. Mas eu podia usar o trabalho das minhas mãos para serví-la assim como o trabalho das mãos delas serviam a mim: meu escrever podia ajudar a melhorar a vida dela, abrir portas para ela, fazer o aprendizado dela progredir.

Escondida – Eu fiquei lá uma semana, e no primeiro dia me escondi dentro de casa, com vergonha que eles vissem que eu não fazia nada além de estudar o dia todo. Mas daí percebi que me esconder era querer excluir eles da minha vida, o velho truque de fugir da floresta para ver se assim as árvores caíam sem fazer barulho.

Forasteira – À tarde então peguei meus livros e minha coragem e fui para a varanda. No começo as três crianças só ficavam me olhando, essa forasteira que aparece de quando em vez, que fala engraçado, que faz coisas mais engraçadas ainda.

Mas daí do nada eles lembraram que livros eles também tinham, e material para escrever. Então eles trouxeram todo seu material escolar, e sentaram no chão de cimento da varanda, com os cadernos no colo, timidamente recusando todos meus convites para vir sentar à mesa.

Progresso – Foi meio que nem quando o Pequeno Príncipe começa a ganhar a confiança da raposa: cada dia eles se aproximavam um pouquinho. No dia seguinte, eles já foram para mesa de pingue-pongue, enquanto eu trabalhava na mesinha de jantar. Eu passei então para a mesa de pingue-pongue, que sendo grande, dava para a gente espalhar nossas coisas cada um num canto, sem invadir o espaço de ninguém. Já no dia seguinte eles finalmente aceitaram meu convite e vieram para a mesinha de jantar, depois do meu muito insistir. Daí depois, até o final da minha visita, eles já vinham e sentavam na mesa sem precisar nem falar nada. Eles estavam em casa.

Troca - Bom lembrar que teoricamente as três crianças estavam de férias. O que quer dizer que eles não tinham tarefa para aqueles dias específicos (tinha um trabalho para o quando as aulas voltassem, mas para isso faltava semanas, e que criança faria dever de casa espontâneamente com semanas de antecedência?).

Eles só estavam copiando o que eles me viam fazer. E eles riam para mim, tipo “sabia que eu sei ler também?”, e começavam a ler em voz alta do nada, saboreando cada palavra, orgulhosos da vida.

Se eu tivesse começado com uma palestra sobre o valor de estudar com afinco, de se esforçar para se dar bem, mandasse eles sacarem seus cadernos para ver, pedisse para lerem em voz alta para mim, e depois fosse me enfurnar dentro de casa para concentrar “nos meus próprios estudos”, tenho certeza que eles não ia sentar para estudar com tanta facilidade, ou com tanta alegria. E nem eu.

De repente, “os meus próprios estudos” eram eles, e o estudo deles era eu. E era difícil dizer quem foi que aprendeu mais com quem, quem estava mais admirado com quem.

Não percam amanhã o final desta melodramática e verídica história!

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

ei, to gostando muito da história. Tô até com vontade de ir pra roça conhecer esse mundo e essas crianças. O único problema é que o Chico já me disse que eu não sou bem vinda. Tudo bem, isso passa. Mal posso esperar pelo capítulo de amanhã....
beijos

agosto 01, 2006 3:07 PM  
Blogger Ester Macedo said...

Naty, a roça é só para os fortes e corajosos. Ao que me consta, estava tudo certinho e combinado para ir e na última hora você ficou com medo da onça. Então não vem que não tem.

Agora tenho que reconhecer que para visitar esse meu blog também precisa de uma certa coragem e disposição. Por isso, agradecemos a preferência e volte sempre.

Beijos e queijos de Minas,

Ester
*****

agosto 02, 2006 10:02 AM  

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