Interplexa

Do Latim Estérico: Inter (prep. "entre") + plexa (particípio do verbo "plicare", "dobrar", "desdobrar", "laçar") Significado: 1. neutro plural:"Coisas entrelaçadas ou que se desdobram internacionalmente" 2. feminino singular: "Mulher (ou menina) de camadas interligadas ou que se desdobra internacionalmente) Vide também: www.internexa.blogspot.com

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Local: Brasília, Toronto

Brasiliense de origem montalvanense desbravando o gelado inverno do doutorado canadense.

16.8.06

A Importância de se Importar

Faroeste Caboclo - Quando eu tinha dezesseis anos, Galdino Jesus dos Santos, um índio pataxó, foi queimado vivo em Brasília, minha cidade natal e capital do Brasil.

A vítima estava em Brasília para as comemorações do 19 de abril, dia do índio. Estando a pensão fechada, ele dormia num ponto de ônibus em plena W-3 Sul.

Os assassinos eram quatro adolescentes, classe média alta. Quando perguntados por que tinham ateado fogo ao índio, responderam: “A gente não sabia que era um índio. Achamos que era só um mendigo.” Como se de repente isso explicasse tudo.

De onde vem a indiferença? - Eu lembro de na época ter pensado “Que idéia horrível!”. Mas minha reação não era bem indignação: na época eu era estóica demais para me indignar com qualquer coisa. Era mais um desprezo intelectual dos assassinos (“que idéia de jerico”), misturado com um resignado “é, acontece”, e com uma oração para alma do índio, que tinha ido dessa para uma melhor, e para os assassinos, para que Deus desse a eles mais juízo.

Sereníssima - E só. Nada de ficar esquentando com o que já aconteceu. Desprezo, resignação, tranqüilidade. Coisa de estóico mesmo.

Que País É Esse? - “É, acontece.” Ô, meu Deus, onde, quando, como é uma coisa dessas “acontece”? Minha falta de sensibilidade na época me assusta hoje quase tanto quanto à dos próprios assassinos. Anestesia de quem cresceu vendo Brasília sair no noticiário nacional não só pela corrupção mas também pelos crimes violentos praticados por adolescentes de classe média alta.

Geração Coca-Cola - Gente da minha idade, da minha classe social, da minha cidade. A "Parada do Índio” ficava no meu caminho para a escola. Foi pintada, cheia de homenagens. Eu passava lá todo dia, duas vezes por dia. E todo dia balançava a cabeça em reprovação, à la Harvey Siegel, como se o problema dos assassinos tivesse sido um erro de lógica, de pensamento, uma educação falha.

Giz - Foi uma falha da educação? Sim, com certeza. Mas, puxa vida!, os caras eram ricos, freqüentaram as melhores escolas, tinham tudo que queriam. O que prova: 1) que educação não é só coisa de escola e 2) que mesmo na escola a ênfase não pode ser só “intelectual”. O objetivo da educação, dentro e fora da sala de aula deveria ser o de tornar pessoas mais humanas. Não é só aprender a pensar, é aprender pensar com o coração e sentir com a cabeça.

Teorema - Mas não: a ênfase cada vez mais desprende o pensar do agir e do sentir, a teoria da prática, as causas das conseqüências, o lado subjetivo do objeto e o lado objetivo do sujeito. Os problemas são formulados e resolvidos “considerando as condições ideais” e “desconsiderando os atritos”.

Metrópole - E a minha reação estóica é conseqüência disso tanto quanto o ato assassino dos jovens. Trata-se outras pessoas como objetos na equação: esquece-se que são também sujeitos: sujeitos agentes e sujeitos sujeitos, que fazem e que são feitos pela “realidade objetiva” de todo dia. As coisas não “acontecem” simplesmente. Elas são feitas.

Indignação da Pedagogia - Comecei ontem a ler a “Pedagogia da Indignação” do Paulo Freire. Ele ficou profundamente abalado com a história de Galdino. A última coisa que ele escreveu foi sobre o nosso Pataxó, e nossos jovens:

“Que coisa estranha, brincar de matar índio, de matar gente. Fico a pensar aqui, mergulhado no abismo de uma profunda perplexidade, espantado diante da perversidade intolerável desses moços desgentificando-se, no ambiente em que decresceram em lugar de crescer.” (Pedagogia da Indignação, p. 66)

Música Urbana - Paulo Freire morreu uns dez dias depois. Não sei se ele entendeu que o Galdino foi morto não foi por ser índio: os moços pensaram que ele fosse “só um mendigo”. Foi um ato desumano de violência, de elitismo, mas não foi por racismo.

Índios - Mas claro que ele foi morto também por ser índio: por estar numa cidade desconhecida, por não ter motorista e ter se perdido, por ter chegado tarde numa pensão sem estrelas, que não tinha recepcionista 24 horas esperando pelo prezado hóspede, ou anfitriã responsável pelo bem estar da visita. Tudo isso para receber as honrarias do Dia do Índio.

Pais e Filhos, Meninos e Meninas - A violência não foi só a dos jovens. Foi da sociedade toda. Foi racismo sim, foi elitismo sim. Da sociedade toda. Meu também. O que não inocenta nem um pouco os quatro culpados. Mas estende a culpa a muitos “inocentes”: ingênuos como eu que não vemos a nossa parte nisso.

Baader-Meinhof Blues - Eu tenho uma amiga que vive dizendo que o contrário do amor não é o ódio, é a indiferença. E como diz Renato Russo, “de onde vem essa indiferença temperada a ferro e fogo?” Essa história do Galdino parece letra de Metrópole misturado com Faroeste Caboclo; Índios com Baader-Meinhof Blues. “A violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais”.

Pacato Cidadão - Uma das correntes mais importantes do legado de Paulo Freire na educação é tentar sacudir a indiferença do “pacato cidadão”. Fazer as pessoas pararem de ser tão passivas, pacientes, para serem também agentes impacientes. E isso começa na escola, no berço.
Mais do Mesmo - Quem me dera ao menos uma vez explicar o que ninguém consegue entender. Mas ainda é cedo.

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Ester,

Achei muito boa a sua reflexão sobre essa aberração. Esse é mais um episódio nada agradável para se lembrar, mas é importante para despertar/manter a chama da indignação ante burrices (sem querer ofender os irracionais), impunidades, injustiças etc...

Beijos.

PP

agosto 16, 2006 7:22 PM  
Anonymous Anônimo said...

clap, clap, clap. Excelente!

agosto 22, 2006 11:53 AM  

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